quinta-feira, 30 de junho de 2011

Afrodescendentes e Povos Indígenas

As políticas de Ações Afirmativas, no País, tem se revelado importantes para a correção das distorções históricas sociais. Parece que o debate central está no reconhecimento do direito e não no confronto de opiniões, como se tem propalado.
A seguir, apresento minha recente participação em mesa redonda que tratava da questão.
AÇÕES AFIRMATIVAS:
NEGROS E POVOS INDÍGENAS EM DEBATE[1].
CARLOS AUGUSTO DE MEDEIROS[2]

“Aqueles que sofrem não esquecem”
(FONSECA, 2009)
O presente texto cumpre duplo objetivo. O primeiro, apresentar o desafio de colocar sob o mesmo espectro a aparente distância entre negros e povos indígenas ou, por outras palavras, abrigar esses dois temas em uma abordagem de maior vigor; o segundo objetivo consiste em reconhecer as especificidades desses temas que desautorizam essa aproximação precipitada. Objetiva, portanto, contribuir para situar o debate em sólidos contextos.
Inicio esse movimento dialético, com o ano de 2001, em Durban, na África do Sul, quando o Brasil participou da Conferência contra o Racismo, a Xenofobia e Outras Formas Correlatas de Discriminação. Naquele mesmo ano, o País (i) condenou o colonialismo e a escravidão como crimes de lesa-humanidade e, (ii) sustentou que os Estados Nacionais deveriam trabalhar para erradicar a desigualdade social, tecnológica, cultural, educacional, econômica e política que tem fundos nos atributos de raça, etnia e de cor.
Esse compromisso que o Brasil assumiu ombro a ombro com outras Nações recebe um nome – Ações Afirmativas – aqui entendidas como “[…] políticas públicas destinadas a atender grupos sociais que se encontram em condições de desvantagem ou vulnerabilidade social em decorrência de fatores históricos, culturais e econômicos”[3]. Possuem por objetivo: “garantir igualdade de oportunidades individuais ao tornar crime a discriminação, e têm como principais beneficiários os membros de grupos que enfrentaram preconceitos”[4].
De origem estadounidense, experiências semelhantes ocorreram em diversos países da Europa Ocidental, Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros[5]. Em diferentes contextos, a ação afirmativa assumiu distintas manifestações, a saber: “ações voluntárias, de caráter obrigatório, ou uma estratégia mista; programas governamentais ou privados; leis e orientações a partir de decisões jurídicas ou agencias de fomento e regulação”[6].
No Brasil, historicamente, as políticas públicas tem se caracterizado por apresentar uma perspectiva social, com medidas redistributivas ou assistenciais contra a pobreza e focadas em concepções de igualdade[7]. Data de 1968 a primeira lei voltada para o que, hoje, denominamos ação afirmativa – tratou-se de uma manifestação favorável do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho a um percentual mínimo de empregados de cor (10%, 15% ou 20%, a depender do ramo de atividade e demanda existente), para fazer frente à discriminação racial no mercado de trabalho; contudo, tal lei não chegou a ser elaborada[8].
Um projeto de lei foi elaborado, nos anos 1980, pelo então, deputado Abdias do Nascimento propondo “ações compensatórias” para o afrobrasileiro, após séculos de discriminação. O projeto, entretanto, não foi aprovado no Congresso Nacional[9].
Nesse contexto de intenso debate em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça, cor, identidade, classe, gênero, orientação sexual, língua e outros, a sociedade se mobiliza em torno da política de cotas nas universidades; do Estatuto da Igualdade Racial[10]; do Programa Universidade para Todos (Prouni); como exemplos.
Igualdade de oportunidades e mérito individual são atributos obrigatórios às políticas de ação afirmativa, assim como, a idéia de restituição de uma igualdade que foi corrompida – como é no caso dos negros – ou que nunca existiu – como no das mulheres. Diferem, contudo, das políticas de redistribuição ou reparação por focarem um grupo especial que, além do pertencimento, deve demonstrar mérito. Nesse sentido, a Filosofia do Direito ensina que tratar o desigual de maneira igual, somente amplia a desigualdade inicial. A ação afirmativa, além disso, associa-se a sociedades democráticas fundadas nesses atributos.
Em sociedades, por fim, notadamente marcadas pela escravidão e pela discriminação social, o problema racial está associado ao social e, desse modo, “um aspecto não pode ser solucionado sem que se considere também o outro”[11].
Com os povos indígenas, como se depreende, a questão se assemelha. Mas talvez, de alguma forma, agrava-se ao considerarmos que

o Estado brasileiro republicano teve sempre, historicamente, uma atitude etnocida frente aos povos indígenas e aos demais grupos culturalmente diferenciados – imaginou os indígenas como seres transitórios, que se transformariam em pequenos proprietários ou trabalhadores rurais[12].

Termos como caboclo ou bugre propõe ocultar a presença indígena na nação brasileira. A indianidade, portanto, persiste aos ataques de complexos movimentos sociais, buscando assegurar a um só tempo a natureza genérica – o “índio” –, bem como, suas autodesignações. Esse tem sido o esforço, sobretudo, dos antropólogos: desnuda “a realidade da mestiçagem biológica e das representações e subjetivações a partir da mesma”[13].
O desconhecimento da questão indigenista, das políticas estatais para o setor e o movimento articulado antiindigenista tem, juntos, contribuída para colocar mais névoa sobre a questão, pois, “no país da mistura, reconhecer a discriminação é sempre confuso, difícil e sutil”[14].
Anteriores ao Estado, submetidos ao processo de colonização no Brasil, mesmo, hoje, os povos indígenas permanecem sujeitos à colonialidade do poder[15]. A situação se agrava ao reconhecermos que

Decorrentes da incorporação de culturas que antes desfrutavam o autogoverno e estavam territorialmente concentradas a um estado maior. Estas desejam seguir sendo sociedades distintas com relação à cultura majoritária da qual fazem parte. Exigem diversas formas de autonomia e autogoverno para assegurar sua sobrevivência como sociedades distintas[16].

A fronteira que separa o debate dos negros dos povos indígenas precisa ser enfrentada. Assim, a fim de atribuirmos qualidade ao debate e, encerrando minha modesta participação, passo a palavra às minhas colegas.



[1] Texto apresentado na I Semana Pedagógica do Curso de Pedagogia do IESB-Oeste (20-22 jun. 2011).
[2] Mestre (UnB) e Doutor (USP) em Educação, na área de Estado, sociedade e educação. Ex-professor da educação básica, por 14 anos, na rede pública de ensino do Distrito Federal, atualmente, docente no curso de graduação, em pedagogia, do IESB-Oeste. Atua, ainda, em programas de pós-graduação lato sensu e presta consultoria em educação para o setores público e privado.
[3] FONSECA, Dagoberto José. Políticas Públicas e ações afirmativas. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 11.
[4] Ibidem, p. 11, grifo nosso.
[5] MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 197-217, novembro/2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2011. p. 199.
[6] Ibidem, p. 199.
[7] MUNANGA (1996 apud MOEHLECKE, 2002, p. 203).
[8] MOEHLECKE, 2002, p. 203.
[9] Ibidem, id.
[10] LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010, Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003.
[11] HERNANDEZ  (2000 apud MOEHLECKE, 2002, p. 215).
[12] BRASIL. MEC. O GOVERNO LULA, OS POVOS INDÍGENAS E AS AÇÕES AFIRMATIVAS. Disponível em: <http://www.google.com.br/search?client=safari&rls=en&q=ação+afirmativa+e+povos+ind%C3%ADgenas&ie=UTF-8&oe=UTF-8&redir_esc=&ei=ZcHwTYiQMJS5tge25tikAw>. Acesso: 9 jun. 2011. p. 7, grifo nosso.
[13] Ibid., id.
[14] Ibid., p. 8.
[15] COELHO, Elizabeth Maria Beserra. Povos indígenas e ações afirmativas. Disponível em: <http://www.nucleohumanidades.ufma.br/pastas/CHR/2007_3/elizabeth_coelho_v5_ne.pdf>. Acesso em: 9 jun. 2011.
[16] Ibid., p. 69.

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